trecho do Capitulo 8/No Plano dos Sonhos/ Do Livro Missionários da Luz/Pelo Espírito de André Luiz/Chico Xavier




trecho do Capitulo 8/No Plano dos Sonhos/ Do Livro Missionários da Luz/Pelo Espírito de André Luiz/Chico Xavier
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– Quando encarnados, na Crosta, não temos bastante consci-
ência dos serviços realizados durante o sono físico; contudo, esses
trabalhos são inexprimíveis e imensos. Se todos os homens prezassem seriamente o valor da preparação espiritual, diante de
semelhante gênero de tarefa, certo efetuariam as conquistas mais
bril
hantes, nos domínios psíquicos, ainda mesmo quando ligados
aos envoltórios inferiores. Infelizmente, porém, a maioria se vale,
inconscientemente, do repouso noturno para sair à caça de emo-
ções frívolas ou menos dignas. Relaxam-se as defesas próprias, e
certos impulsos, longamente sopitados durante a vigília, extravasam em todas as direções, por falta de educação espiritual, verdadeiramente sentida e vivida.
Interessado em esclarecimentos completos. Indaguei:
– Entretanto, isto ocorre com aprendizes de cursos avançados
do Espiritualismo? Poderiam ser vítimas desses enganos alunos de
um instrutor da ordem de Alexandre?
– Como não? – tornou Sertório, fraternalmente. – Com referência a essa probabilidade, não tenha qualquer dúvida. Quantos
pregam a Verdade, sem aderirem intimamente a ela? Quantos
repetem fórmulas de esperança e paz, desesperando e perseguindo, no fundo do coração? Há sempre muitos “chamados” em
todos os setores de construção e aprimoramento do mundo! Os
“escolhidos”, contudo, são sempre poucos.
Completando o pensamento, como a escoimá-lo de qualquer
falsa noção de particularismos na obra divina, Sertório acrescentou:
– E precisamos reajustar nossas definições sobre os “escolhidos”. Os companheiros assim classificados não são especialmente
favorecidos pela graça divina, que é sempre a mesma fonte de
bênçãos para todos. Sabemos que a “escolha”, em qualquer trabalho construtivo, não exclui a “qualidade”, e se o homem não
oferece qualidade superior para o serviço divino, em hipótese
alguma deve esperar a distinção da escolha. Infere-se, pois, que
Deus chama todos os filhos à cooperação em sua obra augusta,
mas somente os devotados, persistentes, operosos e fiéis constroem qualidades eternas que os tornam dignos de grandes tarefas. E,
reconhecendo-se que as qualidades são frutos de construções
nossas, nunca poderemos esquecer que a escolha divina começará
pelo esforço de cada um.
A tese do companheiro era assaz interessante e educativa,
mas havíamos atingido pequeno edifício, em frente do qual Sertó-
rio se deteve e falou:
– É a residência de Vieira. Vejamos o que se passa.
Acompanhei-o em silêncio.
Em poucos instantes, encontrávamo-nos dentro de quarto
confortável, onde dormia um homem idoso, fazendo ruído singular. Via-se-lhe, perfeitamente, o corpo perispirítico unido à forma
física, embora parcialmente desligados entre si. Ao seu lado,
permanecia uma entidade singular, trajando vestes absolutamente
negras. Notei que o companheiro adormecido permanecia sob
impressões de doloroso pavor. Gritos agudos escapavam-lhe da
garganta. Sufocava-se, angustiadamente, enquanto a entidade
escura fazia gestos que eu não conseguia compreender.
Sertório acercou-se de mim e observou:
– Vieira está sofrendo um pesadelo cruel.
E indicando a entidade estranha:
– Creio que ele terá atraído até aqui o visitante que o espanta.
Com efeito, muito delicadamente, o meu interlocutor come-
çou a dialogar com a entidade de luto:
– O amigo é parente do companheiro que dorme?
– Não, não. Somos conhecidos velhos.
E. muito impaciente, acentuou: Francisco Cândido Xavier -
– Hoje, à noite, Vieira me chamou com as suas reiteradas
lembranças e acusou-me de faltas que não cometi, conversando
levianamente com a família. Isso, como é natural, desgostou-me.
Não bastará o que tenho sofrido, depois da morte? Ainda precisarei ouvir falsos testemunhos de amigos maledicentes? Não poderia esperar dele semelhante procedimento, em virtude das relações
afetivas que nos uniam as famílias, desde alguns anos. Vieira foi
sempre pessoa de minha confiança. Em razão da surpresa, deliberei esperá-lo nos momentos de sono, a fim de prestar-lhe os necessários esclarecimentos.
O estranho visitante. Todavia, fez uma pausa, sorriu irônico, e
continuou:
– Entretanto, desde o momento em que me pus a explicar-lhe
a situação do passado, informando-o quanto aos verdadeiros
móveis de minhas iniciativas e resoluções na vida carnal, para que
não prossiga caluniando-me o nome, embora sem intenção, Vieira
fez este rosto de pavor que estão vendo e parece não desejar ouvir
as minhas verdades.
Interessado nas lições novas, aproximei-me do amigo, cujo
corpo descansava em posição horizontal, e senti-lhe o suor frio
ensopando os lençóis.
Não revelava compreender convenientemente o auxílio que
lhe era trazido, fixando-nos com estranheza e ansiedade, intensificando, ainda mais, os gemidos gritantes que lhe escapavam da
boca.
Sentindo a silenciosa reprovação de Sertório, o habitante das
zonas inferiores dirigiu-lhe a palavra de modo especial:
– O senhor admite que devamos ouvir impassíveis os remoques da leviandade? Não será passível de censura e punição o
amigo infiel que se vale das imposições da morte para caluniar e
deprimir? Se Vieira sentiu-se no direito de acusar-me, desconhe-
cendo certas particularidades dos problemas de minha vida privada, não é justo que me tolere os esclarecimentos até ao fim? Não
sabe ele, acaso que os mortos continuam vivos? Ignorará, porventura, que a memória de cada companheiro deve ser sagrada? Ora
esta! Eu mesmo já lhe ouvi, em minha nova condição de desencarnado, longas dissertações referentes ao respeito que devemos
uns aos outros... Não considera, pois, que tenho motivos justos
para exigir um legítimo entendimento?
O interpelado esboçou um gesto de complacência e observou:
– Talvez esteja com a razão, meu caro. Entretanto, creio deva
desculpar seu amigo! Como exigir dos outros conduta rigorosamente correta, se ainda não somos criaturas irrepreensíveis? Tenha calma, sejamos caridosos uns para com os outros!...
E, enquanto a entidade se punha a meditar nas palavras ouvidas. Sertório falou-me em tom discreto:
– Vieira não poderá comparecer esta noite aos trabalhos.
Não pude reprimir a má impressão que a cena me causava e,
talvez porque eu fizesse um olhar suplicante, advogando a causa
do pobre irmão, quase a desencarnar-se de medo, o auxiliar de
Alexandre prosseguiu:
– Retirar violentamente a visita, cuja presença ele próprio
propiciou, não é tarefa compatível com as minhas possibilidades
do momento. Mas podemos socorrê-lo, acordando-o.
E, sem pestanejar, sacudiu o adormecido, energicamente, gritando-lhe o nome com força.
Vieira despertou confuso, estremunhando, sob enorme fadiga,
e ouvi-o exclamar, palidíssimo:
– Graças a Deus, acordei! Que pesadelo terrível!... Será crível
que eu tenha lutado com o fantasma do velho Barbosa? Não! Não
posso acreditar!...
Não nos viu, nem identificou a presença da entidade enlutada,
que ali permaneceu até não sei quando. E, ao retirarmo-nos, ainda
lhe notei as interrogações íntimas, indagando de si mesmo sobre o
que teria ingerido ao jantar, tentando justificar o susto cruel com
pretextos de origem fisiológica. Longe de auscultar a própria
consciência, com respeito à maledicência e à leviandade, procurava materializar a lição no próprio estômago, buscando furtar-se à
realidade.
Sertório, porém, não me proporcionou ensejo a maiores reflexões. Convocando-me ao dever imediato, acrescentou:
– Visitemos o Marcondes. Não temos tempo a perder.
Daí a dois minutos, penetrávamos outro apartamento privado;
todavia, o quadro agora era muito mais triste e constrangedor.
Marcondes estava, de fato, ali mesmo, parcialmente desligado
do corpo físico, que descansava com bonita aparência, sob as
colchas rendadas. Não se encontrava ele sob impressões de pavor,
como acontecia ao primeiro visitado; entretanto, revelava a posi-
ção de relaxamento, característica dos viciados do ópio. Ao seu
lado, três entidades femininas de galhofeira expressão permaneciam em atitude menos edificante.
Vendo-nos, de súbito, o dono do apartamento surpreendeu-se,
de maneira indisfarçável, mormente em fixando Sertório, que era
de seu mais antigo conhecimento. Levantou-se, envergonhado, e
ensaiou algumas explicações com dificuldade:
– Meu amigo – começou a dizer, dirigindo-se ao auxiliar de
Alexandre –, já sei que vem procurar-me... Não sei como esclarecer o que ocorre...
Não pôde, contudo, prosseguir e mergulhou a cabeça nas
mãos, como se desejasse esconder-se de si mesmo.
A essa altura da cena constrangedora, verifiquei, então, sem
vislumbres de dúvida, que as entidades visitantes eram da pior
espécie, de quantas conhecia eu nas regiões das sombras.
Irritadas talvez com o recuo do companheiro, que se revelava
triste e humilhado, prorromperam em grande algazarra, acercando-se mais intensamente de nós, sem o mínimo respeito.
– Impossível que nos arrebatem Marcondes! – disse uma delas, enfaticamente, – Afinal de contas, vim de muito longe para
perder meu tempo assim, sem mais nem menos!
– Ele mesmo nos chamou para a noite de hoje – exclamou a
segunda, atrevidamente – e não se afastará de modo algum.
Sertório ouvia com serenidade, evidenciando íntima compaixão.
A terceira entidade, que parecia reter instintos inferiores mais
completos, aproximou-se de nós com terrível expressão de sarcasmo e falou, dando-me a entender que aquela não era a primeira
vez que Sertório procurava o sitio para os mesmos fins e nas
mesmas circunstâncias:
– Os senhores não passam de intrusos. Marcondes é fraco,
deixando-se impressionar pela presença de ambos. Nós, todavia,
faremos a reação. Não conseguirão arrancar-nos o predileto.
E gargalhando, irônica, acentuava:
– Também temos um curso de prazer. Marcondes não se afastará.
Contrariamente aos meus impulsos, Sertório não demonstrava
a mínima atenção. As palavras e expressões daquela criatura,
porém, irritavam-me.
Ao meu lado, o auxiliar de Alexandre mantinha-se extremamente bondoso. A própria vítima permanecia humilde e triste.
Porque semelhantes insultos?
Ia responder alguma coisa, no sentido de esclarecer o caso em
termos precisos, quando Sertório me deteve:
– André, contenha-se! Um minuto de conversação atenciosa
com as tentações provocadoras do plano inferior pode induzir-nos
a perder um século.
Em seguida, com invejável tranqüilidade, dirigiu-se ao interessado, perguntando, sem espírito de censura:
– Marcondes, que contas darei hoje de você, meu amigo?
O interpelado respondeu, lacrimoso e humilhado:
– Oh, Sertório, como é difícil manter o coração nos caminhos
retos! Perdoe-me... Não sei como isto aconteceu... Não posso
explicar-me!
Mas Sertório parecia pouco disposto a cultivar lamentações e.
mostrando-se muito interessado em aproveitar o tempo, interrompeu-o:
– Sim. Marcondes. Cada qual escolhe as companhias que prefere. Futuramente você compreenderá que somos seus amigos
leais e que lhe desejamos todo o bem.
Despejaram as mulheres nova série de frases ridicularizadoras. Marcondes começou, de novo, a lastimar-se, mas o mensageiro de Alexandre, sem hesitar, tomou-me a destra e regressamos à
via pública.
– Voltemos imediatamente – disse ele, decidido.
– E em que ficamos? – indaguei – não vai acordá-lo?
– Não. Não podemos agir aqui do mesmo modo. Marcondes
deve demorar-se em tal situação, para que amanhã a lembrança
desagradável seja mais duradoura, fortificando-lhe a repugnância
pelo mal.
– Que fazer, então? – perguntei, espantado.
– Diremos ao nosso orientador o que ocorre – redargüiu Sertório, calmamente – é o que nos cabe levar a efeito.
E, sintetizando longas considerações que poderia expender relativamente ao assunto, frisou:
– Por agora, André, chama-nos o dever mais alto, no campo
de nossa jornada para Deus. Entretanto, quando terminarem as
instruções da noite, voltarei a ver o que é possível efetuar em
favor de nossos pobres amigos. No momento, não devemos perder
os minutos. As preleções de Alexandre não se destinam somente
ao preparo dos nossos irmãos que ainda se ligam aos envoltórios
de carne, na superfície da Crosta; são igualmente valiosas para
nós outros, que necessitamos enriquecer possibilidades para socorrer, com êxito, os companheiros encarnados.
– Sim, concordo – respondi. – No entanto, a situação de Vieira e Marcondes sensibiliza-me fundamente.
Sertório, porém, cortou-me a palavra, rematando, seguro de si
mesmo:
– Conserve seu sentimento, que é sagrado; não se arrisque,
porém, a sentimentalismo doentio. Esteja tranqüilo quanto à assistência, que não lhes faltará no momento oportuno; não se esqueça,
porém, de que, se eles mesmos algemaram o coração em semelhantes cárceres, é natural que adquiram alguma experiência
proveitosa à custa do próprio desapontamento.'''

Vampiro/Capítulo 31/Livro Nosso Lar/Pelo Espírito Andre Luiz/Chico Xavier



VAMPIRO

Eram vinte e uma horas. Ainda não havíamos descansado, senão em momentos de palestra rápida, necessária à solução de problemas espirituais.
Aqui, um doente pedia alívio; ali, outro necessitava passes de reconforto.
Quando fomos atender a dois enfermos, no Pavilhão 11, escutei gritaria próxima. Fiz instintivo movimento de aproximação, mas Narcisa deteve-me, atenciosa:
- Não prossiga - disse -; localizam-se ali os desequilibrados do sexo. O quadro seria extremamente doloroso para seus olhos. Guarde essa emoção para mais tarde.
Não insisti. Entretanto, fervilhavam-me no cérebro mil interrogações.


Abrira-se um mundo novo à minha pesquisa intelectual. Era indispensável recordar o conselho da genitora de Lísias, a cada momento, para não me desviar da obrigação justa.
Logo após às vinte e uma horas, chegou alguém dos fundos do enorme parque. Era um homenzinho de semblante singular, evidenciando a condição de trabalhador humilde. Narcisa recebeu-o com gentileza, perguntando:
- Que há, Justino? Qual é a sua mensagem?


O operário, que integrava o corpo de sentinelas das Câmaras de Retificação, respondeu, aflito:
- Venho participar que uma infeliz mulher está pedindo socorro, no grande portão que dá para os campos de cultura. Creio tenha passado despercebida aos vigilantes das primeiras linhas.
- E por que não a atendeu? - interrogou a enfermeira.
O servidor fez um gesto de escrúpulo e explicou:
- Segundo as ordens que nos regem, não pude fazê-lo, porque a pobrezinha está rodeada de pontos negros.
- Que me diz? - revidou Narcisa, assustada.
- Sim, senhora.
- Então, o caso é muito grave.


Curioso, segui a enfermeira, através do campo enluarado. A distância não era pequena. Lado a lado, via-se o arvoredo tranqüilo do parque muito extenso, agitado pelo vento caricioso. Havíamos percorrido mais de um quilômetro, quando atingimos a grande cancela a que se referira o trabalhador.
Deparou-se-nos, então, a miserável figura da mulher que implorava socorro do outro lado. Nada vi, senão o vulto da infeliz, coberta de andrajos, rosto horrendo e pernas em chaga viva; mas Narcisa parecia divisar outros detalhes, imperceptíveis ao meu olhar, dado o assombro que estampou na fisionomia, ordinariamente calma.
- Filhos de Deus - bradou a mendiga ao avistar-nos -, dai-me abrigo à alma cansada! Onde está o paraíso dos eleitos, para que eu possa fruir a paz desejada.


Aquela voz lamuriosa sensibilizava-me o coração. Narcisa, por sua vez, mostrava-se comovida, mas falou em tom confidencial:
- Não está vendo os pontos negros?
- Não - respondi.
- Sua visão espiritual ainda não está suficientemente educada.
E, depois de ligeira pausa, continuou:
- Se estivesse em minhas mãos, abriria imediatamente a nossa porta; mas, quando se trata de criaturas nestas condições, nada posso resolver por mim mesma. Preciso recorrer ao Vigilante-Chefe, em serviço. Assim dizendo, aproximou-se da infeliz e informou, em tom fraterno:
- Faça o obséquio de esperar alguns minutos.


Voltamos apressadamente ao interior. Pela primeira vez, entrei em contacto com o diretor das sentinelas das Câmaras de Retificação. Narcisa apresentou-me e notificou-lhe a ocorrência. Ele esboçou um gesto significativo e ajuntou:
- Fez muito bem, comunicando-me o fato. Vamos até lá.
Dirigimo-nos os três para o local indicado.
Chegados à cancela, o Irmão Paulo, orientador dos vigilantes, examinou atentamente a recém-chegada do Umbral, e disse:
- Esta mulher, por enquanto, não pode receber nosso socorro. Trata-se de um dos mais fortes vampiros que tenho visto até hoje. É preciso entregá-la à própria sorte.


Senti-me escandalizado. Não seria faltar aos deveres cristãos abandonar aquela sofredora ao azar do caminho? Narcisa, que me pareceu compartilhar da mesma impressão, adiantou-se suplicante:
- Mas, Irmão Paulo, não há um meio de acolhermos essa miserável criatura nas Câmaras? - Permitir essa providência - esclareceu ele -, seria trair minha função de vigilante.


E indicando a mendiga que esperava a decisão, a gritar impaciente, exclamou para a enfermeira:
- Já notou, Narcisa, alguma coisa além dos pontos negros?
Agora, era minha instrutora de serviço que respondia negativamente.
- Pois vejo mais - respondeu o Vigilante-Chefe.
Baixando o tom de voz, recomendou:
- Conte as manchas pretas.
Narcisa fixou o olhar na infeliz e respondeu, após alguns instantes:
- Cinqüenta e oito.


O Irmão Paulo, com a paciência dos que sabem esclarecer com amor, explicou:
- Esses pontos escuros representam cinqüenta e oito crianças assassinadas ao nascerem. Em cada mancha vejo a imagem mental de uma criancinha aniquilada, umas por golpes esmagadores, outras por asfixia.
Essa desventurada criatura foi profissional de ginecologia. A pretexto de aliviar consciências alheias, entregava-se a crimes nefandos, explorando a infelicidade de jovens inexperientes. A situação dela é pior que a dos suicidas e homicidas, que, por vezes, apresentam atenuantes de vulto.


Recordei, assombrado, os processos da medicina, em que muitas vezes enxergara, de perto, a necessidade da eliminação de nascituros para salvar o organismo materno, nas ocasiões perigosas; mas, lendo-me o pensamento, o Irmão Paulo acrescentou:
- Não falo aqui de providências legítimas, que constituem aspectos das provações redentoras, refiro-me ao crime de assassinar os que começam a trajetória na experiência terrestre, com o direito sublime da vida.


Demonstrando a sensibilidade das almas nobres, Narcisa rogou:
- Irmão Paulo, também eu já errei muito no passado. Atendamos a esta desventurada. Se me permite, eu lhe dispensarei cuidados especiais.
- Reconheço, minha amiga - respondeu o diretor da vigilância, impressionando pela sinceridade -, que todos somos espíritos endividados; entretanto, temos a nosso favor o reconhecimento das próprias fraquezas e a boa-vontade de resgatar nossos débitos; mas esta criatura, por agora, nada deseja senão perturbar quem trabalha. Os que trazem os sentimentos calejados na hipocrisia emitem forças destrutivas. Para que nos serve aqui um serviço de vigilância?


E, sorrindo expressivamente, exclamou:
- Busquemos a prova.
O Vigilante-Chefe aproximou-se, então, da pedinte e perguntou:
- Que deseja a irmã, do nosso concurso fraterno?
- Socorro! socorro! socorro!... - respondeu lacrimosa.
- Mas, minha amiga - ponderou acertadamente -, é preciso sabermos aceitar o sofrimento retificador.
Por que razão tantas vezes cortou a vida a entezinhos frágeis, que iam à luta com a permissão de Deus?
Ouvindo-o, inquieta, ela exibiu terrível carantonha de ódio e bradou:
- Quem me atribui essa infâmia? Minha consciência está tranqüila, canalha!...
Empreguei a existência auxiliando a maternidade na Terra. Fui caridosa e crente, boa e pura...
- Não é isso que se observa na fotografia viva dos seus pensamentos e atos. Creio que a irmã ainda não recebeu, nem mesmo o benefício do remorso.
Quando abrir sua alma às bênçãos de Deus, reconhecendo as necessidades próprias, então, volte até aqui.
Irada, respondeu a interlocutora:
- Demônio! Feiticeiro! Sequaz de Satã!... Não voltarei jamais!...
Estou esperando o céu que me prometeram e que espero encontrar.
Assumindo atitude ainda mais firme, falou o Vigilante-Chefe com autoridade:
- Faça, então, o favor de retirar-se. Não temos aqui o céu que deseja.
Estamos numa casa de trabalho, onde os doentes reconhecem o seu mal e tentam curar-se, junto de servidores de boa-vontade.
A mendiga objetou atrevidamente:
- Não lhe pedi remédio, nem serviço. Estou procurando o paraíso que fiz por merecer, praticando boas obras.
E, endereçando-nos dardejante olhar de extrema cólera, perdeu o aspecto de enferma ambulante, retirando-se a passo firme, como quem permanece absolutamente senhor de si.
Acompanhou-a o Irmão Paulo com o olhar, durante longos minutos, e, voltando-se para nós, acrescentou:


- Observaram o Vampiro? Exibe a condição de criminosa e declara-se inocente; é profundamente má e afirma-se boa e pura; sofre desesperadamente e alega tranqüilidade; criou um inferno para si própria e assevera que está procurando o céu.


Ante o silêncio com que lhe ouvíamos a lição, o Vigilante-Chefe rematou:
- É imprescindível tomar cuidado com as boas ou más aparências.
Naturalmente, a infeliz será atendida alhures pela Bondade Divina, mas, por princípio de caridade legítima, na posição em que me encontro, não lhe poderia abrir nossas portas.
(trecho do livro Nosso Lar/Capítulo 31/Pelo Espírito Andre Luiz/Chico Xavier).